“Se John Lennon não tivesse morrido”
sábado, 24 de dezembro de 2011
Se John Lennon não tivesse morrido
sábado, 17 de dezembro de 2011
Mar é morada da saudade
Sei agora da morte de Cesária Évora. Sei-me instantaneamente triste. Sequer reconheço o que escrever. Cesária era mais que Évora para mim. Um símbolo imprescindível da música negra que transcende o orgulho e a pretensão brasileira. Sou brasileiríssimo, mas Cesária era uma amostra de onde viemos, da negritude orgulhosa da África mãe sofredora. Não tenho palavras... Não tenho mesmo o que dizer. Reproduzirei apenas os mestres. Que eles digam o que sofro com a morte de Cesária... Que alguém leia o que escrevi e entenda a importância que essa mulher teve para toda a lusofonia. Respeito profundamente as mortes concomitantes de Joãosinho Trinta e de Sérgio Brito. Mas meu objeto maior de respeito hoje é dessa mulher que defendeu seu país e toda a diversidade lusófona tão apaixonadamente. Tornou-se mito...
Para rimar e homenagear, ouso, mesmo com rimas longínquas, como nosso respeito e conhecimento por alguém tão importante:
Passou agora Joãosinho Trinta
Passou também o Sérgio Brito
Passou o teatro e o carnaval
Mas passou alguém mais além
Que muitos podem achar ninguém
Cesária Évora nunca foi a tal
Mas há hoje quem ainda a sinta
Cesária Évora foi um mito...
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
- Infinito: galé! ...
Por abutre - me deste o sol candente,
E a terra de Suez - foi a corrente
Que me ligaste ao pé...
O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.
Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.
Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
- Pagodes colossais...
A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista - corta o mármor de Carrara;
Poetisa - tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...
Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela - doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...
E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
"Abriga-me, Senhor!..."
Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz. . . "
Nem veem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim.
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
Foi depois do dilúvio... um viadante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
"Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
- Serei tua Eloá. . . "
Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.
Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir - Judeu maldito -
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d'Europa - arrebatada -
Amestrado falcão! ...
Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos - alimária do universo,
Eu - pasto universal...
Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.
Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...
I
'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
II
Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...
III
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. . .
Não quero tornar esse post tão longo que seja ilegível... Termino com uma letra de música de Cesária Évora que todos deviam conhecer. Coloco letra e versão, pois o que ela canta é um dialeto de Cabo Verde, sua terra natal. Um dia voltarei a tratar dessa lenda, mais respeitosamente, antes de ter bebido as seis Bohemias que hoje me acompanham nesse post.
Num tardinha na camba di sol
Na tardinha, ao pôr do Sol
Que me trazem um sentimento de dor
domingo, 27 de novembro de 2011
13 músicas caipiras muito importantes
Sei que compro uma briga enorme ao publicar um post com esse título e, confesso, a intenção era essa, mesmo. A polêmica leva à divulgação e à consequente valorização deste nosso tesouro cultural que é a música caipira.
Música | Compositores | Importância | Detalhes |
“Pingo d'água” | Raul Torres e João Pacífico | Linda canção dos precursores da música caipira, que relata a esperança do caboclo pela chuva redentora. | Ver letra e vídeo com Tonico e Tinoco |
“Menino da porteira” | Teddy Vieira e Luizinho | Talvez a mais conhecida música do gênero, que conta uma triste história que, inclusive, já virou filme. | Ver letra e vídeo com Daniel, no filme homônimo |
“Pagode em Basília” | Tião Carreiro e Lourival dos Santos | Outro clássico do gênero, em que a virtuose do violeiro Tião Carreiro é impressionante. | Ver letra e vídeo com Tião Carreiro e Pardinho |
“Canoeiro” | Alocin e Zé Carreiro | Outra música que valoriza também a capacidade sonora da viola nas improvisações onomatopaicas da natureza. | Ver letra e vídeo com Carreiro e Carreirinho |
“Ferreirinha” | Carreirinho | Talvez uma das primeiras canções do tipo “moda de viola” que surgiram, contando a triste história do Ferreirinha, personagem fictício de música que ganhou até estátua em homenagem. | Ver letra e vídeo com Carreiro e Carreirinho |
“Chalana” | Mário Zan e Arlindo Pinto | A bela canção que traz como destaques a paisagem pantaneira e a sanfona, outro instrumento fundamental da música caipira. | Ver letra e vídeo com Almir Sáter |
“Travessia do Araguaia” | Décio dos Santos | Uma moda de viola que relata a dureza da vida do boiadeiro e da boiada, com uma metáfora bíblica muito bonita. | Ver letra e vídeo com Tião Carreiro e Pardinho |
“Chitãozinho e xororó” | Serrinha e Athos Campos | Uma das mais conhecidas músicas caipiras, carregada do bucolismo tradicional do gênero e que deu nome a uma das mais importantes duplas sertanejas da história. | Ver letra e vídeo com Zé Tupi e Zé Pires |
“Amargurado” | Dino Franco e Tião Carreiro | Bela canção, reproduzida pelas mais belas vozes do gênero, relatando um amor não mais correspondido pela amada, mas que permanece assim mesmo. | Ver letra e vídeo com Tião Carreiro e Pardinho |
“Mágoa de boiadeiro” | Nonô Basílio e Índio Vago | Relata a decadência do boiadeiro tradicional em virtude do transporte de boiadas em veículos. | Ver letra e vídeo com Pedro Bento e Zé da Estrada |
“Caboclo na cidade” | Dino Franco e Nhô Chico | Uma moda de viola típica, relatando o contraste entre a vida urbana e a vida no campo e seus valores. | Ver letra e vídeo com Dino Franco e Mouraí (espetacular acompanhamento de viola e show de vozes) |
“Cabocla Teresa” | Raul Torres e João Pacífico | Texto que relata um assassinato por ciúme, com uma declamação inicial. Uma das músicas que faz parte do repertório da maioria dos intérpretes do gênero, com destaque para os lendários irmãos Tonico e Tinoco. | Ver letra e vídeo com José Domingos e Rolando Boldrin |
“Ladrão de mulher” | Vieira e Vieirinha | Representa a catira, com palmeado e sapateado ritmado ao som da viola, destacando a dupla Vieira e Vieirinha, conhecidos como “Reis da Catira”. | Ver letra e vídeo com Guilherme e Santiago |
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Mais uma vez a Somália é sinônimo de fome
“A fome”
A Fome mostra às vezes seu rosto esqueléticoTal qual a Morte, sua irmã...Ninguém pode ignorá-laQuando ela transpassa-nos com sua lança de dorLancinante...Por que é tão cruel a Fome?Não tem piedade de ninguém...Mas ela se supera ao atacar as criançasSugando-lhes, secando suas entranhas inexoravelmente...
Vejo sua cara terrívelEstampada nas capas de jornais e revistasMas também num simples passeio pelas ruasDe muitos lugares deste país...Pergunto-me o que mais pode ser feitoAlém da simples distribuição de bolsas...
A Fome e seu rosto esqueléticoPerseguem-me em meus pesadelosAssombram-me o olharFazem-me lembrar do menino magrelo de outroraQue nunca passou fome, entretanto...Esse menino ainda existe aqui dentroE se irmana com os que sofrem a dorDe não ter o que comer.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Um menino em São Vicente
Quando era menino, ansiava pelas férias em São Vicente. Era um tempo de aventuras e sonhos, muitos sonhos... Fui com meus pais aos 4 anos para Caetanópolis, terra maravilhosa, mas nunca me esqueci de São Vicente, exatamente por que lá eu podia fazer muitas coisas totalmente inadmissíveis na casa de meus pais.
A começar da viagem em si. Tirando o fato de um rapaz magrelo e fracote como eu ter de caminhar com a mala pesada do centro de Sete Lagoas, no início da Monsenhor Messias (onde o ônibus do Cedro a Sete Lagoas tinha ponto final) até a estação ferroviária (onde era o ponto do ônibus que levava a São Vicente), tudo era bom. Íamos normalmente em ônibus do tipo monobloco, com motor na frente, ao lado do motorista. Esse motor era coberto por uma estrutura onde nos sentávamos e tínhamos visão total da paisagem de estrada de terra encascalhada, margeada por fazendas e lagoas. Mas o lugar mais esperado da paisagem era a ponte sobre o Rio das Velhas, impressionantemente estreita sobre um rio de águas pesadamente barrentas que, por várias vezes, em períodos chuvosos cobriam-na (até que um dia essas águas levaram a ponte embora). Era como se estivéssemos andando numa corda bamba sobre um precipício.
A parada em Funilândia ou Jequitibá, dependendo do trajeto do ônibus em que viajávamos, era sempre interessante. Além da tradicional ida ao banheiro, havia um lanche de requeijão, de biscoito do tipo “boca de velho”, de polvilho ou daqueles antigos “quebra-quebra” com um café tão gostoso!... Outra parada que havia (quando íamos por Jequitibá) era em Baldim, na lanchonete do meu padrinho Domingos Barbosa. Aí era quando meus irmãos morriam de inveja, pois era só descer e dizer para ele “bença, padrim!”, que eu ganhava um doce e, de vez em quando, até um chocolate Diamante Negro ou Sonho de Valsa. Claro que eu tinha que dividir com meus irmãos (cada um dava uma mordidinha, controlada e medida com o dedo).
Chegando em São Vicente, já sabíamos para a casa de qual tio cada um iria, considerando que não iríamos todos para a casa de um só, pois eram pobres, com famílias numerosas e muitas bocas iriam onerar o orçamento, até porque ficávamos sempre no mínimo uma semana. Mas não importava para onde iríamos: seríamos sempre bem recebidos, com aquele amor e carinho que sempre marcaram nossas vidas indelevelmente.
Meu tio Divino e minha tia Cecília, que saudades deles! Brincávamos com o primo Desinho e ouvíamos as histórias maravilhosas e cheia de mentiras do meu tio Divino, irmão caçula do meu pai Tião que fazia aniversário no mesmo dia que ele (24 de fevereiro). Esse meu tio, mesmo com dificuldades para caminhar que acabaram o tornando definitivamente paralítico, era dono de habilidades fantásticas com as quais criou seus filhos e lhes ensinou diversas profissões: de artesão de couro, passando por serralheiro e também por pedreiro. Infelizmente, não conseguia largar o cigarro, o que seria um dos responsáveis por tirá-lo de nós.
Minhas tias Té (Esther) e Dorvalina, severas como meu pai (irmão delas), mas com corações tão cheios de um carinho que transbordava e nos inundava. O chafariz, os quitutes deliciosos de tia Té, doces, cubus, bolos, biscoitos e a comida simplesmente inesquecível. Os picolés quadrados de formas de geladeira de Chica de Zezé Gonçalves que pagavam para nós com suas moedinhas sempre disponíveis. A habilidade de minha tia Dorvalina nos tricôs e seu olhar sereno, mesmo diante da dificuldade de ser paralítica, como meu tio Divino.
Na casa de tio Irênio (que não conheci, pois a morte o levou antes) tínhamos (e ainda temos, graças a Deus) a nossa queridíssima tia Divina, uma pessoa espetacular de quem nunca me esqueço em minhas orações. Mulher lutadora, que, mesmo perdendo o marido muito cedo, criou todos os seus filhos com muito amor e nos reservava o mesmo carinho. Sua casa fica na Copacabana, bairro que está entre dois córregos onde nadávamos e pescávamos.
Como é bom lembrar agora de meus primos todos, especialmente os de idade próxima a minha, como Zelito (que saudades! Deus o levou tão cedo...), o Vandinho, o Derson, o Desinho, o Luisinho Castelo Branco, o Willian Macaco... E os amigos do peito Nélson de Sô Dino, Paraná, Julinho Brioso e tantos outros. Jogávamos futebol nos campinhos diversos que havia por lá e ficávamos invariavelmente cheios de carrapatos, que tirávamos nadando nos córregos (que diziam infestados de xistose, embora nunca ficamos doentes disso nem vimos nenhum dos nossos amigos). As pescarias também eram memoráveis... Sempre voltávamos com o cambão repleto de piabinhas, carás e as deliciosas traíras. Caçar passarinho também era bom (embora hoje me lembre um pouco arrependido disso), pois as rolinhas que matávamos viravam saborosos petiscos preparados por minhas tias ou pelas mães de meus amigos.
Tenho tantas histórias das férias de minha infância em São Vicente, que esse post é insuficiente para relatar. No entanto, ele serve para relatar minha saudade de tudo isso. Hoje vou tão pouco a São Vicente, atropelado pelo tempo inexorável, que nos absorve e que nos aliena. É preciso vencer essa lassidez que nos leva à acomodação no lugar comum da falta de tempo para tudo. Vou tentar isso, pois tenho consciência de que, se sou o homem que sou, devo muito a esse menino magrelo que passava férias em São Vicente.
domingo, 24 de julho de 2011
Crônicas de viagem I - Valores
Saio do ônibus rapidamente, na frente de todos os demais. Sigo caminhando sozinho para o trabalho. Um outro colega vem logo atrás de mim, mas não o espero. Tenho pressa de chegar ao trabalho, sentar-me à mesa e isolar-me ainda mais. Mas intimamente coloco-me que jamais devo esquecer meus valores.
quinta-feira, 2 de junho de 2011
Um soco no estômago
Lua nova demais(Elisa Lucinda)
Dorme tensa a pequena
sozinha como que suspensa no céu
Vira mulher sem saber
sem brinco, sem pulseira, sem anel
sem espelho, sem conselho, laço de cabelo, bambolê
Sem mãe perto,
sem pai certo
sem cama certa,
sem coberta,
vira mulher com medo,
vira mulher sempre cedo.
Menina de enredo triste,
dedo em riste,
contra o que não sabe
quanto ao que ninguém lhe disse.
A malandragem, a molequice
se misturam aos peitinhos novos
furando a roupa de garoto que lhe dão
dentro da qual menstruará
sempre com a mesma calcinha,
sem absorvente, sem escova de dente,
sem pano quente, sem O B.
Tudo é nojo, medo,
misturação de “cadês.”
E a cólica,
a dor de cabeça,
é sempre a mesma merda,
a mesma dor,
de não ter colo,
parque
pracinha,
penteadeira,
pátria.
Ela lua pequenininha
não tem batom, planeta, caneta,
diário, hemisfério,
Sem entender seu mistério,
ela luta até dormir
mas é menina ainda;
chupa o dedo
E tem medo
de ser estuprada
pelos bêbados mendigos do Aterro
tem medo de ser machucada, medo.
Depois menstrua e muda de medo
o de ser engravidada, emprenhada,
na noite do mesmo Aterro.
Tem medo do pai desse filho ser preso,
tem medo, medo
Ela que nunca pode ser ela direito,
ela que nem ensaiou o jeito com a boneca
vai ter que ser mãe depressa na calçada
ter filho sem pensar, ter filho por azar
ser mãe e vítima
Ter filho pra doer,
pra bater,
pra abandonar.
Se dorme, dorme nada,
é o corpo que se larga, que se rende
ao cansaço da fome, da miséria,
da mágoa deslavada
dorme de boca fechada,
olhos abertos,
vagina trancada.
Ser ela assim na rua
é estar sempre por ser atropelada
pelo pau sem dono
dos outros meninos-homens sofridos,
do louco varrido,
pela polícia mascarada.
Fosse ela cuidada,
tivesse abrigo onde dormir,
caminho onde ir,
roupa lavada, escola, manicure, máquina de costura, bordado,
pintura, teatro, abraço, casaco de lã
podia borralheira
acordar um dia
cidadã.
Sonha quem cante pra ela:
“Se essa Lua, Se essa Lua fosse minha…”
Sonha em ser amada,
ter Natal, filhos felizes,
marido, vestido,
pagode sábado no quintal.
Sonha e acorda mal
porque menina na rua,
é muito nova
é lua pequena demais
é ser só cratera, só buracos,
sem pele, desprotegida, destratada
pela vida crua
É estar sozinha, cheia de perguntas
sem resposta
sempre exposta, pobre lua
É ser menina-mulher com frio
mas sempre nua.