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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O Cedro

O texto a seguir foi publicado no encarte do Festival Clara Nunes de 2018, o que foi um grande honra para mim. Clara Nunes é um ser de luz, que sempre se preocupou em fazer um trabalho que valorizasse a música brasileira em sua totalidade. Mas, como ser humano, era fantástica! Adorava crianças e eu, por um breve momento, fui objeto desse afeto, o que me marcou indelevelmente...



São 5h30min da manhã. O menino levanta-se, ainda sonolento, ao som do rádio Phillips no programa do Zé Béttio (“Joga água nele! Joga água nele!”), e vai para a cozinha, onde já estão o pai e a mãe:
— Bença, pai! Bença, mãe!

Já sabe das obrigações da manhã. Vai tratar das galinhas, dos porcos, dos cachorros, molhar a horta e buscar um pouco de lenha, palha de milho e sabugos para o pai acender o fogão. Aproveita para ir rapidinho no córrego do Cedro (que passa nos fundos da casa) conferir as linhas de espera. Desta vez, um bagre grandinho e uma traíra pequena engoliram os anzóis. O menino pega os peixes e corre para mostrar o pai e a mãe. Outros irmãos já estão acordados e começa a fila para o único banheiro da casa. Enquanto a mãe frita os bolinhos de chuva para a merenda, o menino senta na beira do fogão a lenha e o pai continua a enorme história do João Soldado, onde a interrompera no dia anterior. Merenda rapidinho os bolinhos contados (três para cada um) com o café ralo e troca de roupa para ir para a escola.

O menino não pode atrasar-se. Vai com o pai pelos fundos do quintal, passando por dentro da fábrica do Cedro e saindo pela portaria, para chegar à escola Coronel Caetano.
Um dia, o menino pescava de cima da ponte. De repente, uma mão toca-lhe o ombro: “Cuidado, menino! O peixe pode te puxar para dentro d’água, de tão magrinho que você é!”
Olha para trás e vê uma luz imensa. Era Clara Nunes, uma dona linda! O menino jamais esqueceria aquela mulher, cuja presença e cujo sorriso marcaram indelevelmente sua alma. Ela adorava ir àquele lugar, principalmente na Pedreira, um lugar maravilhoso, cheio de pedras enormes, dentro do córrego do Cedro. 

E o menino continuou seus dias de tarefas de casa e de escola. Nessa rotina, o menino cresce. Dentro desse menino, hoje homem, mora o Cedro. Foi-se um dia para longe, mas não pôde lá ficar. Dentro dele mora o Cedro. Como uma alma, inseparável do que ele é, o Cedro representa não apenas as lembranças de sua infância, de sua família, mas o cerne que lhe sustenta.
O Cedro assim é para muitos. Orgulho de ser de lá, orgulho de ter Clara e de ter artistas novas como Roberta como conterrâneas, orgulho de suas tradições culturais, orgulho de suas lindas paisagens, orgulho de seu povo, orgulho de ser o berço da indústria têxtil no país, orgulho...




quinta-feira, 29 de março de 2018

As paineiras e os meninos que voam



Chego à escola sentindo-me um estranho naquele espaço infantil. Olho ao redor, paro o carro sob as enormes paineiras da frente da escola. Faço minha oração e saio do carro. Respiro fundo o ar puro daquelas paragens e passo pelo portão, observando as diversas crianças que brincam no pátio, enquanto aguardam o sinal de entrada da tarde. Elas sorriem, gritam e correm. Algumas estranham aquele homem esquisito que sorri meio sem graça para elas, ao mesmo tempo em que lhes diz um boa-tarde meio abafado.
Sou recebido pelas novas companheiras de trabalho e levado ao meu posto. Tarefas são executadas, mas não deixo de pensar nas crianças lá fora. As horas se vão e a noite chega. Com ela, vêm as lembranças daquele dia, especialmente daquelas crianças brincando no pátio. No outro dia, outras crianças viriam, pois eu trabalharia no horário da manhã. Fecho os olhos e durmo, entorpecido pelo cansaço de um dia intenso...
Outro dia em que paro o carro sob as paineiras, agora às 6h da manhã. A escola está vazia e observo as paineiras gigantes. Um grande número de aves aprontam uma algazarra nelas e eu fico olhando aqueles pássaros que voam de uma para outra árvore. Parece que estão ali brincando...
As primeiras crianças chegam mais cedo no transporte público do município. Recebo-as e vou cuidar delas até que chegue o horário de iniciar as aulas. Lembro-me de que fui criança também. Tal como elas, um menino lampeiro que adorava correr de um lado para outro, de subir em árvores e de comer fruta no pé. Um menino que gostava de jogar bola descalço na rua, brincar de pique-esconde e de tantas outras coisas.
Sinto alguém puxar-me a roupa... “Tio, o senhor gosta de soltar papagaio?” Não espera minha resposta e já emenda uma história. “Outro dia eu tava soltando com meu pai, quando é fé meu papagaio garrou na fiação elétrica...” Interrompi imediatamente. Que coisa, menino! Na fiação elétrica? E seu pai não lhe chamou a atenção? Isso é um perigo... De morte! Não se solta papagaio perto de rede elétrica. E o menino continuava... “Mas tio, não tinha problema, porque meu pai me levou pra outro lugar. Aí, quando é fé, chegou um punhado de meninos com uns papagaios grandão, que custava a voar. O meu era pequeno, de saco de lixo preto. Mas meu pai pôs umas varetas de bambu bem fina e ele ficou leve. O meu papagaio também não tinha rabo, era sureco. Quando é fé, os menino foi soltar os grandão deles e meu pai falou que ia cortar a linha deles e que ia me ensinar...”
Outras crianças chegaram mais perto para ver o motivo de o tio estar tão exaltado. E aí aproveitei para tecer um sermão sobre os cuidados ao soltar pipas, procurando áreas propícias e seguras e, principalmente, não usar cerol nem a famigerada linha chilena. Mas, para minha surpresa, várias crianças discordam de mim dizendo que essa linha é que é a boa, tanto a número 3 quando a número 4, tanto a rosa quanto a verde. E eu, dando uma de técnico têxtil, fui explicar o que significava o título dos fios, como se aquilo interessasse àquelas crianças. Falei sobre os riscos para quem solta papagaios com tais linhas, bem como para os ciclistas e motociclistas, bem como sobre as responsabilidades legais de quem faz isso. Depois de muito falar, lembrei que meu público eram apenas crianças...
Ou seriam algo mais? Quem sabe eram anjos disfarçados testando meu conhecimento, minha sensibilidade e minha capacidade de interagir com seres tão fantásticos? Ou seriam pássaros? Porque, ao observar aquelas crianças, percebi que elas voavam... Assim como as pipas de que falavam, essas criaturas inigualáveis voavam bem alto, presas às linhas, com cerol ou não, chilenas ou simplesmente linhas 10 de poliéster com que seus pais as seguravam. Na verdade, sonhavam em subir cada vez mais alto, mas presas à origem e à segurança daqueles que as amam por essas linhas tênues.
Voei junto com elas!... Nunca fui um caçador de pipas, mas assim como Hassan, imaginei-me cortando a linha que me prendia a alguns dos valores falhos que me orientaram até ali como educador, para que eu abrisse meu olhar para um novo jeito de ensinar e de aprender. Um sorriso minúsculo no canto de minha boca, apenas de um lado, lembrou-me Sohrab. Eu era esse menino. Eu era todos aqueles meninos que voam como pássaros e pipas até mais alto que podem e depois pousam naquelas paineiras frondosas da escola, puxadas pelas linhas do amor à educação, que, inexoráveis, não se rompem.