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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sobre peixes e a vida

Que relação pode ter a frase de Kierkegaard e a curiosidade reproduzida abaixo?

"A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para a frente." (Soren Kierkegaard)

Um peixe de água salgada vive na água doce? E um peixe de água doce, vive em água salgada? Não. Os líquidos que circulam no corpo do peixe de água salgada têm aproximadamente a mesma quantidade de sais da água do mar. Se o peixe for colocado em água doce, a concentração de líquidos de seu corpo será maior que a do ambiente. O peixe absorverá água e não terá como eliminá-la, porque seu rim é pouco desenvolvido. Ele inchará e poderá explodir. Se um peixe de água doce for colocado no mar, a concentração de líquidos de seu corpo será bem menor que a da água e ele perderá líquido até ficar desidratado.
Fonte: http://guiadoscuriosos.ig.com.br/

















Maneira estranha de começar um post... Mas o que me ocorre para esse texto é exatamente a ideia de que não temos respostas para tantas coisas. Sequer sabemos o que perguntar, na maioria das vezes. Aliás, não originalidade no que estou dizendo. Alguém já viu isso na TV. A grande verdade é que isso é algo sobre que precisamos refletir. Somos peixes muitas vezes fora do nosso ambiente, mesmo que dentro da água. Como homens, como podemos nos adaptar às circunstâncias vorazes que nos cercam na sociedade moderna?
Crescemos com o que vivemos. O passado nos importa tanto quanto o presente e o futuro. O pensamento de Kierkegaard é magistral.
"Esse filósofo dinamarquês foi quem estabeleceu uma conexão entre Hegel e o futuro existencialismo. Além de rejeitar Hegel, ele abordou situações relacionadas à natureza da fé, à instituição da fé e da ética cristãs bem como à teologia. Por causa disso, sua obra é, algumas vezes, caracterizada como existencialismo cristão, em oposição ao existencialismo de Jean-Paul Sartre ou ao proto-existencialismo de Friedrich Nietzsche, ambos derivados de uma forte base ateística." (Fonte: adaptação de texto da Wikipedia)
Pois isso torna o pensamento de Kierkegaard mais interessante ainda. Professa o respeito ao passado e projeta a esperança. E a esperança nada mais é do que a maior prova de fé que qualquer pessoa pode ter. É crer naquilo que ainda não é real, no que pode simplesmente vir a ser. Para sobrevivermos nesse mundo voraz é preciso que nos adaptemos às circunstâncias e isso não é fácil sem que tenhamos uma força maior como referência de apoio.
Crer em Deus ou em qualquer outra força superior de nome diferente que Ele tenha é algo assim: uma manifestação de esperança.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Espera-me

Deixo aqui um poema dos tempos de solidão e angústia por que passam todos os homens. Lembro-me desses momentos com a certeza de que superá-los foi um exercício de força de vontade e fé para um amigo meu e ex-aluno e ex-colega de profissão, que hoje vive menos só, livre dos vícios que o atormentavam naquela época.


“Espera-me”

Quando olhardes para trás e vires
em meus olhos o quanto sou sozinho,
não me deixes ser mais o lobo hesse —
espera-me na beira do caminho...

Quando sentires que, embora ao teu lado,
meus pensares estejam longe, à procura,
não me deixes ser mais Sam Hamilton —
espera-me antes de chegares à loucura...

Quando beijares minha face molhada,
sem conseguires amainar o maremoto violento —
espera-me antes de te desfolhares ao vento.

Quando enfim desistires de me exorcizar,
entregando-te à morte como a um amigo —
espera-me, que quero ir contigo...

**************

Vi todo o processo de recuperação por que passou esse meu camarada. Para não usar um clichê, ou pelo menos incrementá-lo, digo-lhes que ele foi ao fundo do “corgão” e conseguiu voltar, “with a little help from his friends” e, sobretudo, com a fé naquela força maior que nos guia. Não foi fácil...
Esse meu amigo vai ler esse post. Hoje faz 20 anos de sobriedade. Tenho uma frase, minha mesmo, de que gosto muito e repito insistentemente: se a razão nos guia, a emoção nos move.
Vou mudá-la um pouco, mas a força dessas palavras permanecem: se a razão nos guia e a emoção nos move, a fé nos sustenta.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Literatura africana lusófona

Pouco se fala e pouco se ensina a respeito da literatura africana de língua portuguesa aqui no Brasil. Como professor de literatura, pude tomar conhecimento da riqueza da produção literária africana lusófona ao longo de minha vivência acadêmica e, principalmente, através de estudos por iniciativa própria. Embora seja ainda uma literatura pouco conhecida no Brasil, nossos maiores escritores tem sido referência para boa parte dos autores africanos. A divulgação da literatura africana entre nós poderá ser um dos caminhos importantes para o Brasil recuperar seus laços com as culturas africanas e compreender mais profundamente suas próprias raízes.
Sobretudo no século XX, essa literatura escrita em língua portuguesa surgiu na África. Mas isso não quer dizer que antes disso não havia literatura na África lusófona. Devido, sobretudo, ao baixo índice de alfabetização do país, as manifestações eram sobretudo orais, constituindo o que chamamos de “Oratura”.
O espaço desse post não comporta a diversidade do que se pode discutir a respeito desse tema. De acordo com as manifestações dos leitores, poderei estender a outros posts esse assunto curioso e de suma importância. Meus alunos sempre têm a oportunidade de contato com essa literatura através de apostilas que elaborei para informá-los sobre isso.
Porém, para “adoçar a boca” dos meus caros leitores, transcrevo abaixo algumas amostras de poesia engajada, que fazem parte do movimento conhecido como “Negritude”.


Adeus à hora da largada
(José Agostinho Neto)

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

(Poemas extraídos de “No reino de Caliban II” — antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa)


Lá no água grande
(Alda Espírito Santo)

Lá no “Água Grande” a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.
Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

(É nosso o solo sagrado da terra)
No mesmo lado da canoa

As palavras do nosso dia
são palavras simples
claras como a água do regato,
jorrando das encostas ferruginosas
na manhã clara do dia-a-dia.

É assim que eu te falo,
meu irmão contratado numa roça de café
meu irmão que deixas teu sangue numa ponte
ou navegas no mar, num pedaço de ti mesmo em
[luta com o gandu (1)
Minha irmã, lavando, lavando
p'lo pão dos seus filhos,
minha irmã vendendo caroço
na loja mais próxima
p'lo luto dos seus mortos,
minha irmã conformada
vendendo-se por uma vida mais serena,
aumentando afinal as suas penas...
É para vós, irmãos, companheiros da estrada
o meu grito de esperança
convosco eu me sinto dançando
nas noites de tuna
em qualquer fundão, onde a gente se junta,
convosco, irmãos, na safra do cacau,
convosco ainda na feira,
onde o izaquente (2) e a galinha vão
[render dinheiro.
Convosco, impelindo a canoa p'la praia
juntando-me convosco
em redor do vadô panhá (3)
juntando-me na gamela
vadô tlebessá (4)
a dez tostões.

Mas as nossas mãos milenárias
separam-se na areia imensa
desta praia de S. João
porque eu sei, irmão meu, tisnado
[como eu p'la vida,
tu pensas irmão da canoa
que nós os dois, carne da mesma carne
batidos p'los vendavais do tornado
não estamos do mesmo lado da canoa.

Escureceu de repente.
Lá longe no outro lado da Praia
na ponta de S. Marçal
há luzes, muitas luzes
nos quixipás (5) sombrios...
O pito dóxi (6) arrepiante, em sinais misteriosos
convida à unção desta noite feiticeira...
Aqui só os iniciados
no ritmo frenético dum batuque
[de encomendação
aqui os irmão do Santu
requebrando loucamente suas cadeiras
soltando gritos desgarrados,
palavras, gestos,
na loucura dum rito secular.

Neste lado da canoa, eu também estou irmão,
na tua voz agonizante, encomendando preces,
[ juras, maldições.

Estou aqui, sim, irmão
nos nozados (7) sem tréguas
onde a gente joga
a vida dos nossos filhos.
Estou aqui, sim, meu irmão
no mesmo lado da canoa.

Mas nós queremos ainda uma coisa mais bela.
Queremos unir as nossas mãos milenárias,
das docas dos guindastes
das roças, das praias
numa liga grande, comprida
dum pólo a outro da terra
p'los sonhos dos nossos filhos
para nos situarmos todos do mesmo lado
[da canoa.

E a tarde desce...
A canoa desliza serena,
rumo à Praia Maravilhosa
onde se juntam os nossos braços
e nos sentamos todos, lado a lado,
na canoa das nossas praias.

Vocabulário:
1 — Gandu: tubarão;
2 — Izaquente: frutos cujas sementes são caracterizadas por um alto poder energético;
3 — Vadô Panhá: espécie de peixe voador que no tempo seco se apanha na praia;
4 — Vadô tlebessá: peixe voador que se distingue do vadô panhá por apenas se pescar em alto mar;
5 — Quixipás: barracas feitas com folhas de palmeira;
6 — Pitu dóxi: “apito doce”, literalmente. Flautista virtuoso;
7 — Nozado: velório.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Folia de Reis


Recebi no último dia 03/01/2010 a Folia de Reis em minha casa, para oferecer um almoço, conforme a tradição.

Eu, mais do que ninguém, tenho uma forte ligação com essa manifestação cultural (nasci no dia 6 de janeiro, dedicado aos Reis Magos).
Segundo a revista Superinteressante, da Editora Abril:

“Os magos só são mencionados em apenas um dos quatro evangelhos, o de Mateus. Nos 12 versículos em que trata do assunto, Mateus não especifica o número deles. Sabe-se apenas que eram mais de um, porque a citação está no plural – e não há nenhuma menção de que eram reis. ‘Não há evidência histórica da existência dessas pessoas’, diz André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ‘São personagens criados pelo evangelista Mateus para simbolizar o reconhecimento de Jesus por todos os povos.’

De qualquer forma, a tradição permaneceu viva e foi apenas no século III que eles receberam o título de reis – provavelmente como uma maneira de confirmar a profecia contida no Salmo 72: ‘Todos os reis cairão diante dele’. Cerca de 800 anos depois do nascimento de Jesus, eles ganharam nomes e locais de origem: Melchior, rei da Pérsia; Gaspar, rei da Índia; e Baltazar, rei da Arábia. Em hebreu, esses nomes significavam ‘rei da luz’ (melichior), ‘o branco’ (gathaspa) e ‘senhor dos tesouros’ (bithisarea).

Quem hoje for visitar a catedral de Colônia, na Alemanha, será informado de que ali repousam os restos dos reis magos. De acordo com uma tradição medieval, os magos teriam se reencontrado quase 50 anos depois do primeiro Natal, em Sewa, uma cidade da Turquia, onde viriam a falecer. Mais tarde, seus corpos teriam sido levados para Milão, na Itália, onde permaneceram até o século 12, quando o imperador germânico Frederico dominou a cidade e trasladou as urnas mortuárias para Colônia. ‘Não sei quem está enterrado lá, mas com certeza não são eles’, diz o teólogo Jaldemir Vitório, do Centro de Estudo Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. ‘Mas isso não diminui a beleza da simbologia do Evangelho de Mateus ao narrar o nascimento de Cristo.’ Afinal, devemos aos magos até a tradição de dar presentes no Natal. No ritual da antiguidade, ouro era o presente para um rei. Incenso, para um religioso. E mirra, para um profeta (a mirra era usada para embalsamar corpos e, simbolicamente, representava a mortalidade).”
 
É interessante observar como essa manifestação apresenta diversidades de acordo com a região, a cidade ou, até mesmo, entre os grupos de uma mesma cidade. Mas pode-se explicar: por ser de tradição oral, passada de pai para filho e assim por diante, as variações são comuns, de acordo com o entendimento que é dado a cada representação. 

O mais importante é perceber que essa tradição, pelo menos na minha cidade de Caetanópolis, terra da cantora Clara Nunes, vem se firmando a cada ano e influenciando jovens a mantê-la, como os brilhantes estudantes universitários de música Otávio e Basílio, irmãos que, desde crianças, estão sempre participando como cantores ou como representantes dos Reis Magos. Vale citar também o trabalho espetacular do Osmar Marimbondo, que mantém viva a tradição do seu pai, o Zé Marimbondo, que tem saúde e disposição até hoje para acompanhar a sua famosa folia.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Ai de ti, Haiti!...

Ai de ti, Haiti!...

a tristeza me invade ao ver aquele palco destruído
um povo muito mais que sofrido
tenta salvar o que não pode ser salvo apenas com braços humanos
tenta salvar com a esperança
o rosto de uma criança
simboliza toda a dor e estupefação daquele povo
e, nós, sentados em nossas cadeiras confortáveis de um escritório refrigerado, na segurança de nossas inseguranças
lembramos apenas dos versos de uma pessoa
Fernando Pessoa:
"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente"

Ai de ti, Haiti!...








quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Morreu Zilda Arns

O terremoto no Haiti ocorrido terça-feira matou várias pessoas, mas uma morte me trouxe uma enorme tristeza: a de Zilda Arns Neumann, médica pediatra e sanitarista, fundadora e coordenadora internacional da Pastoral da Criança. Ela tinha 75 anos e também era coordenadora nacional da Pastoral da Pessoa Idosa.
Zilda Arns Neumann nasceu em Forquilhinha (SC) em 25 de agosto de 1934. Residia em Curitiba. Era irmã de Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo emérito de São Paulo. Por três anos seguidos, foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz .
Minha esposa coordena há alguns anos o trabalho da Pastoral da Criança no bairro onde moro e eu acabo participando diretamente, pois a pesagem das crianças e os eventos da Pastoral acontecem todos em minha própria casa, coisa de que não abro mão, mesmo que já exista no bairro um local adequado para isso. Nada me satisfaz mais do que ver aquelas crianças sendo avaliadas com tanto carinho e atenção pela equipe da Pastoral.
Como minha esposa, em todo o Brasil e em alguns outros países do mundo onde esse trabalho foi implementado, mulheres e alguns homens abnegados realizam um trabalho maravilhoso que vem, acima de tudo, resgatando vidas.
Em 27 anos de existência no Brasil, a Pastoral da Criança conta com a ajuda de mais de 260 mil voluntários e atende a quase 2 milhões de gestantes e crianças menores de seis anos e a 1,4 milhão de famílias pobres, em 4.063 municípios brasileiros. Sem nenhuma ajuda dos governos, diga-se de passagem.
A Pastoral da Criança é o maior mutirão de solidariedade que existe neste país. Uma solidariedade consciente, educadora, promotora da cidadania e defensora da vida humana com qualidade, especialmente da criança.
Quais versos poderiam traduzir minha tristeza?

Morreu Zilda Arns!

Morreu Zilda Arns!
O que podemos dizer a respeito?
Que o Paraíso está mais feliz por recebê-la?
Que a vida é mesmo desse jeito?
Que agora Zilda Arns Neumann é uma estrela?

Morreu Zilda Arns!
Só posso agora expressar minha tristeza...
Não sei o que ela representará lá no Céu,
mas sei que, mesmo não tendo ganhado o Nobel,
Zilda Arns foi e será uma mulher de rara beleza...

Aquela beleza indefectível que emoldura anjos e santos
De uma aura misteriosa e inconfundível.
Fica em minha memória um sorriso suave
e uma admiração inconteste e inabalável.

Morreu Zilda Arns!
A tristeza habita em mim agora...
Sei entretanto que, não obstante Zilda morreu,
Sua obra permanece intacta.

(Enanre Etraud Senun)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

E a verdade?...

Outro dia refleti sobre comentários de leitores a respeito de um post sobre o caso Boris Casoy e os garis, falando especificamente sobre a questão da verdade. Lembrei-me de um texto de um grande escritor que fez (e faz) parte de minha vida cultural: Malba Tahan (*). Peço, inclusive, licença aos detentores dos direitos autorais para publicar uma fábula espetacular desse escritor sobre a verdade, para pensarmos juntos a respeito:


Uma Fábula sobre a Fábula
(Lenda Oriental)

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (Deus é grande! Deus é grande!).
Quando Deus criou a mulher criou também a fantasia. Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.
Envolta em lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
— Quem és?
— Sou a Verdade! — respondeu ela, com voz firme. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Xeique do Islã!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao grão-vizir:
— Senhor, — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.
— Como se chama?
— Chama-se a Verdade!
— A Verdade! — exclamou o grão-vizir, subitamente assaltado de grande espanto. — A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!
Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:
— Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso Califa. Com esses ares impudicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste a Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também a Obstinação. E a Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid...
Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras muçulmanas.
Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
— Quem és?
— Sou a Acusação! — respondeu ela, em tom severo. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Comendador dos Crentes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se como o grão-vizir.
— Senhor — disse, inclinando-se humilde, — uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o sultão Harun Al-Raschid.
— Como se chama?
— A Acusação!
— A Acusação? — repetiu o grão-vizir, aterrorizado. — A Acusação quer entrar nesse palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se a Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, que não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!
Voltou o chefe dos guardas com a proibição do grão-vizir e disse à Verdade.
— Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!
Vendo quem não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste a Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também o Capricho.
E a Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.
Vestiu-se com riquíssimos trajos, cobriu-se com joias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso senhor dos Árabes.
Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
— Quem és?
— Sou a Fábula — respondeu ela, em tom meigo e mavioso. — Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a falar com o grão-vizir:
— Senhor, — disse, inclinando-se, humilde — uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiência de nosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.
— Como se chama?
— Chama-se a Fábula!
— A Fábula! — exclamou o grão-vizir, cheio de alegria. — A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Bem-vinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes! Quero que a Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!
E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou.
E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que a Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o sultão Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e senhor do grande império muçulmano!

(“Minha vida querida”. Tahan, Malba. Rio de Janeiro: Conquista, 1957, p.93-98.)

* Júlio César de Melo e Sousa (Rio de Janeiro, 6 de maio de 1895 — Recife, 18 de junho de 1974), mais conhecido pelo heterônimo de Malba Tahan (Ali Iezid Izz-Edim Ibn Salim Hank Malba Tahan), foi um escritor e matemático brasileiro. Através de seus romances foi um dos maiores divulgadores da matemática no Brasil. Ele é famoso no Brasil e no exterior por seus livros de recreação matemática e fábulas e lendas passadas no Oriente, muitas delas publicadas sob o heterônimo/pseudônimo de Malba Tahan. Seu livro mais conhecido, “O Homem que Calculava”, é uma coleção de problemas e curiosidades matemáticas apresentada sob a forma de narrativa das aventuras de um calculista persa à maneira dos contos de Mil e Uma Noites. Monteiro Lobato classificou-a como: “... obra que ficará a salvo das vassouradas do Tempo como a melhor expressão do binômio ‘ciência-imaginação.” Júlio César, como professor de matemática, destacou-se por ser um acerbo crítico das estruturas ultrapassadas de ensino. “O professor de Matemática em geral é um sádico.” — Denunciava ele. — “Ele sente prazer em complicar tudo.” Com concepções muito a frente de seu tempo, somente nos dias de hoje Júlio César começa a ter o reconhecimento de sua importância como educador. Em 2004, foi fundado em Queluz — terra onde o escritor passou sua infância—o Instituto Malba Tahan, com o objetivo de fomentar, resgatar e preservar a memória e o legado de Júlio César.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Sobre a compra dos caças

A polêmica gerada em relação à compra dos caças franceses, suecos ou americanos é, no mínimo, estranha. A FAB deixou transparecer sua preferência pelos caças suecos Gripen, enquanto o executivo prefere o francês Rafale. Os nomes dos jatos não são os melhores, especialmente quando avaliados pelo povo mais gozador do mundo.

Aliás, deixo para os leitores sugestões de piadas a respeito. O que vou dizer a respeito é mais sério. Eu disse ser estranha a polêmica, pois é notório o momento pré-eleitoral, em que órgãos de imprensa e políticos em geral começam a assumir suas posições de forma mais efetiva. Será que há conflito de interesses ou de opiniões? Sugiro ver matéria de “O Globo” a respeito.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Poetopias: que trem doido é esse?


Quando fui optar pelo título deste blog que ora inicio, imaginei algo simples como "The EDN", que explicarei oportunamente. Entretanto, não havia disponibilidade. Alguém já pensara nisso antes (embora, para os que me conhecem há mais tempo, esse pseudônimo é anterior — e muito — ao advento dos blogs). Mas, como quem chega limpo bebe água primeiro, eis aqui minhas poesias utópicas lançadas em meio virtual, na maior cara de pau, com o perdão dessa rima (que poderia ser menos cretina). Ou menos imperfeita.
Para início (ou final, se ninguém gostar dele) de conversa, deixo aqui meus primeiros versos... se é que podemos chamá-los assim.

“Sobrenome”

eu tenho um sonho e quero guardá-lo
nos recônditos mais ocultos do meu ser
pois tenho também uma garrafa cujo gargalo
é o túnel por onde tento te entrever

machuco as mãos nos cacos de vidro
firo-me sempre e não sei por quê
às vezes choro o sonho perdido
que foi nunca poder amar você

e o meu sonho (não quero perdê-lo)
e o pedaço desse velho novelo
todas essas coisas — pesadelo

e aquela vida sem o meu sonho
e este velho poema bisonho
meu sobrenome é tristonho...