Pesquisar este blog

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Literatura africana lusófona

Pouco se fala e pouco se ensina a respeito da literatura africana de língua portuguesa aqui no Brasil. Como professor de literatura, pude tomar conhecimento da riqueza da produção literária africana lusófona ao longo de minha vivência acadêmica e, principalmente, através de estudos por iniciativa própria. Embora seja ainda uma literatura pouco conhecida no Brasil, nossos maiores escritores tem sido referência para boa parte dos autores africanos. A divulgação da literatura africana entre nós poderá ser um dos caminhos importantes para o Brasil recuperar seus laços com as culturas africanas e compreender mais profundamente suas próprias raízes.
Sobretudo no século XX, essa literatura escrita em língua portuguesa surgiu na África. Mas isso não quer dizer que antes disso não havia literatura na África lusófona. Devido, sobretudo, ao baixo índice de alfabetização do país, as manifestações eram sobretudo orais, constituindo o que chamamos de “Oratura”.
O espaço desse post não comporta a diversidade do que se pode discutir a respeito desse tema. De acordo com as manifestações dos leitores, poderei estender a outros posts esse assunto curioso e de suma importância. Meus alunos sempre têm a oportunidade de contato com essa literatura através de apostilas que elaborei para informá-los sobre isso.
Porém, para “adoçar a boca” dos meus caros leitores, transcrevo abaixo algumas amostras de poesia engajada, que fazem parte do movimento conhecido como “Negritude”.


Adeus à hora da largada
(José Agostinho Neto)

Minha Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
tu me ensinaste a esperar
como esperaste nas horas difíceis

Mas a vida
matou em mim essa mística esperança

Eu já não espero
sou aquele por quem se espera

Sou eu minha Mãe
a esperança somos nós
os teus filhos
partidos para uma fé que alimenta a vida

Hoje
somos as crianças nuas das sanzalas do mato
os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
nos areais ao meio-dia
somos nós mesmos
os contratados a queimar vidas nos cafezais
os homens negros ignorantes
que devem respeitar o homem branco
e temer o rico
somos os teus filhos
dos bairros de pretos
além aonde não chega a luz elétrica
os homens bêbedos a cair
abandonados ao ritmo dum batuque de morte
teus filhos
com fome
com sede
com vergonha de te chamarmos Mãe
com medo de atravessar as ruas
com medo dos homens
nós mesmos

Amanhã
entoaremos hinos à liberdade
quando comemorarmos
a data da abolição desta escravatura

Nós vamos em busca de luz
os teus filhos Mãe
(todas as mães negras
cujos filhos partiram)
Vão em busca de vida.

(Poemas extraídos de “No reino de Caliban II” — antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa)


Lá no água grande
(Alda Espírito Santo)

Lá no “Água Grande” a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.
Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.

(É nosso o solo sagrado da terra)
No mesmo lado da canoa

As palavras do nosso dia
são palavras simples
claras como a água do regato,
jorrando das encostas ferruginosas
na manhã clara do dia-a-dia.

É assim que eu te falo,
meu irmão contratado numa roça de café
meu irmão que deixas teu sangue numa ponte
ou navegas no mar, num pedaço de ti mesmo em
[luta com o gandu (1)
Minha irmã, lavando, lavando
p'lo pão dos seus filhos,
minha irmã vendendo caroço
na loja mais próxima
p'lo luto dos seus mortos,
minha irmã conformada
vendendo-se por uma vida mais serena,
aumentando afinal as suas penas...
É para vós, irmãos, companheiros da estrada
o meu grito de esperança
convosco eu me sinto dançando
nas noites de tuna
em qualquer fundão, onde a gente se junta,
convosco, irmãos, na safra do cacau,
convosco ainda na feira,
onde o izaquente (2) e a galinha vão
[render dinheiro.
Convosco, impelindo a canoa p'la praia
juntando-me convosco
em redor do vadô panhá (3)
juntando-me na gamela
vadô tlebessá (4)
a dez tostões.

Mas as nossas mãos milenárias
separam-se na areia imensa
desta praia de S. João
porque eu sei, irmão meu, tisnado
[como eu p'la vida,
tu pensas irmão da canoa
que nós os dois, carne da mesma carne
batidos p'los vendavais do tornado
não estamos do mesmo lado da canoa.

Escureceu de repente.
Lá longe no outro lado da Praia
na ponta de S. Marçal
há luzes, muitas luzes
nos quixipás (5) sombrios...
O pito dóxi (6) arrepiante, em sinais misteriosos
convida à unção desta noite feiticeira...
Aqui só os iniciados
no ritmo frenético dum batuque
[de encomendação
aqui os irmão do Santu
requebrando loucamente suas cadeiras
soltando gritos desgarrados,
palavras, gestos,
na loucura dum rito secular.

Neste lado da canoa, eu também estou irmão,
na tua voz agonizante, encomendando preces,
[ juras, maldições.

Estou aqui, sim, irmão
nos nozados (7) sem tréguas
onde a gente joga
a vida dos nossos filhos.
Estou aqui, sim, meu irmão
no mesmo lado da canoa.

Mas nós queremos ainda uma coisa mais bela.
Queremos unir as nossas mãos milenárias,
das docas dos guindastes
das roças, das praias
numa liga grande, comprida
dum pólo a outro da terra
p'los sonhos dos nossos filhos
para nos situarmos todos do mesmo lado
[da canoa.

E a tarde desce...
A canoa desliza serena,
rumo à Praia Maravilhosa
onde se juntam os nossos braços
e nos sentamos todos, lado a lado,
na canoa das nossas praias.

Vocabulário:
1 — Gandu: tubarão;
2 — Izaquente: frutos cujas sementes são caracterizadas por um alto poder energético;
3 — Vadô Panhá: espécie de peixe voador que no tempo seco se apanha na praia;
4 — Vadô tlebessá: peixe voador que se distingue do vadô panhá por apenas se pescar em alto mar;
5 — Quixipás: barracas feitas com folhas de palmeira;
6 — Pitu dóxi: “apito doce”, literalmente. Flautista virtuoso;
7 — Nozado: velório.

3 comentários:

  1. A mim também muito interessa(atualmente)a diversidade e riqueza cultural que a língua portuguesa nos oferece nos diversos países lusófonos. Você tem razão quando diz que pouco se fala e pouco se ensina sobre a literatura africana. Particularmente, tive uma experiência gratificante ao trabalhar com o filme "Língua: vidas em português"(arquivo do blog). Antes, não dava muita atenção ou importância à história da nossa língua. Depois de um curso fui "despertada", aprendi muito.
    Parabéns pelo blog e pelos ricos textos.
    Serei visita constante por aqui.
    Abraços,
    Cida

    ResponderExcluir
  2. Prezada Professora Cida, grato pela visita e pelo comentário. A história de nossa língua é muito bonita e rica, mas os fatos que levaram ao seu surgimento na África, especialmente, considerando sobretudo a diversidade criada pelos dialetos luso-africanos é impressionante. Tenho muito material a respeito que não poderei postar em sua plenitude, mas havendo leitores interessados, posso enviar por e-mail.

    ResponderExcluir
  3. domingo de tardezinha, eu estava mesmo atoa, convidei meu companheir pra ir pescar na lagoa, levemo a rede de laaaaaance... ai ai, fomo pescar de canoaiaiaiai'

    ResponderExcluir