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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A Guerreira e a África

Falar sobre a África sempre mexeu comigo, desde os tempos em que recitava Castro Alves, aos sete anos de idade. Lá se vão 37 anos de admiração pela obra desse grande poeta que gostava de recitar suas poesias (dizem que ele as escrevia exatamente para serem recitadas e não apenas lidas individualmente, a fim de atingir o máximo de pessoas). A literatura africana lusófona, tão pouco divulgada, mas tão preciosa, traz grandes influências desse contexto e dessa abordagem feita pelo poeta baiano, que denunciava a escravidão e o tráfico de escravos, mácula indelével na história do Brasil.

Enquanto escrevo esse post, embalado ao som de Cesária Évora, notável cantora do arquipélago africano e lusófono de Cabo Verde, que sempre se apresenta de pés descalços, como forma de mostrar sua origem humilde e sofrida. Seguindo o caminho das suas músicas, ouço o dialeto crioulo cabo-verdiano composto uma mistura da língua nativa com as línguas dos conquistadores, que lá estiveram (considerando que o arquipélago foi um ponto de convergência e rota de cruzamentos marítimos de várias nacionalidades, por interesses colonialistas, de piratagem ou escravocratas). Principalmente a língua portuguesa.

O que ouço é o substrato linguístico, o resíduo natural impregnado pelos falares caboclos, impactado e afetado pelo superstrato neolatino das línguas românicas, sobretudo o português, por um processo de desculturação e aculturação progressivo, num ambiente colonialista, escravocrata e bárbaro. Canções que lamentam, nascidas da memória oral e passadas de boca em boca, Cesaria Évora, faz uma viagem pelos meandros mais subjetivos da alma de seu povo e de sua gente.

Esse dialeto crioulo cabo-verdiano tem status de “língua” interjectiva, onomatopaica, aglutinante, sincopada, elíptica, apostrófica, apocopada, sintética, primitiva, própria das literaturas africanas de língua portuguesa, cujo somatório do substrato e superstrato (ortográfico e fonológico) apresenta peculiaridades próprias de uma “língua” oral ou falada, aglutinante. As elisões dão aos textos um tom malemolente, nostálgico, saudosista e melancólico, expressando com fina emotividade a atmosfera do Arquipélago.

Veja as letras das canções abaixo:


Sabor de Pecado

Na ponta de bôs lábios
Tem fogo di amor
Tem mel di abelha
Tem paixão tem calor
Tem tentaçon di maçã
Tem sabor di pecado
Bôs bejos tem
Doçura e mistêr

(de Novas, Manuel. CD São Vicente di Longe, Cesária Evora. Studio Plus XXX, Paris, Dezembro de 2000, p.2)



Mar é morada de sodade

Num tardinha na camba di sol
Mi t'andá na pr'aia de Nantasqued
Lembra'n praia di Furna Sodade
frontán 'm tchorá Mar é morada di sodade
El ta separá-no pa terra longe
El ta separá-no d'nôs mâe, nós amigo
Sem certeza di torná encontrá
M'pensá na nha vida mi só
Sem ninguem di fé, perto di mim
Pa st'odjá quês ondas ta 'squebrá di mansinho
Ta trazé-me um dor di sentimento
[de Maninha, Lela. CD Cap-Vert (Cabo-Verde Islands), Cesária Evora]


Troco agora de cantora. Ouço a mineira, conterrânea e um dos meus ídolos na música: Clara Nunes. A canção de Chico Buarque de Holanda “Morena de Angola” leva-me de novo para a África e consigo vibrar com a voz marcante dessa mineira guerreira.

Clara Guerreira: assim era conhecida essa mulher admirável que, na minha infância e adolescência via passar na porta de minha casa, nas breves visitas que fazia à família. Nunca deixava de ir à famosa “pedreira”, uma espécie de lajedo que há no famoso córrego do Cedro, próximo à casa onde eu morava naquele tempo. Olhava-a timidamente, quando ela passava e eu estava na rua ou, quando dentro de casa, pelas frestas das janelas. Tinha vergonha, como bom “capiau” (que sou até hoje) daquela mulher impressionante, de beleza singular e de uma voz melodiosa e firme, mesmo quando estava apenas conversando.

Achava um pouco estranho o sotaque, já marcado pelo jeito fluminense de dizer as coisas. Mas ainda se percebia a raiz mineira, indelével. Surpreendia-me sempre aquela mulher, tia de um conhecido meu naquele tempo, com quem jogava bola, o Suede. Hoje, ainda jogo bola com o Doutor Suede, brilhante ortodontista que, inclusive, faz um ótimo trabalho com o meu filho caçula.

Clara Nunes tem uma história sofrida, como Cesária Évora. Ela também gostava de cantar descalça, como Cesária Évora. Também defendeu suas raízes, como Cesária Évora. Também é inesquecível, como Cesária Évora.

A música que toca agora é outra. A linda composição “Tristeza pé no chão”, de Armando Fernandes, mais conhecido como Mamão, lá de Juiz de Fora. Finalizo com a letra da música:


“Tristeza pé no chão”

Dei um aperto de saudade
No meu tamborim
Molhei o pano da cuíca
Com as minhas lágrimas
Dei meu tempo de espera
Para a marcação e cantei
A minha vida na avenida sem empolgação

Dei um aperto de saudade
No meu tamborim
Molhei o pano da cuíca
Com as minhas lágrimas
Dei meu tempo de espera
Para a marcação e cantei
A minha vida na avenida sem empolgação


Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão
Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão

Fiz o estandarte com as minhas mágoas
Usei como destaque a tua falsidade
Do nosso desacerto fiz meu samba enredo
Do velho som da minha surda dividi meus versos

Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão
Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão

Nas platinelas do pandeiro coloquei surdina
Marquei o último ensaio em qualquer esquina
Manchei o verde esperança da nossa bandeira
Marquei o dia do desfile para quarta-feira

Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão
Vai manter a tradição
Vai meu bloco tristeza e pé no chão

*************************
* Para ver vídeos de Cesária Évora e de Clara Nunes, pesquise no Google Vídeos. Você vai se surpreender, se ainda não conhece...

9 comentários:

  1. Professor,
    Fico contente por saber que não estou sozinha no apreço à música cabo-verdiana. Além de Cesária Évora, ouço Tito Paris e um jovem músico de nome Tcheka. Deste, vem-me à lembrança a música "Agonia", que tem o tom melancólico que você mencionou. Do Tito, gosto de "Dança ma mi criola", um ritmo mais alegre, dançante.
    Clara...
    As canções interpretadas por ela revelam a autêntica cultura brasileira, a influência africana marcando o ritmo, a alegria, a religiosidade.
    Uma das maiores cantoras do Brasil.
    Parabéns pelo post.
    Abraços,
    Cida.

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  2. Amei o blog, parabéns...!!!
    Professor poeta, e que ao ler pela sala,
    muito gentilmente, como sempre,
    chega até a minha carteira
    e me alertava do sono.
    Sucesso...
    VF

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  3. Cesária Évora e Clara Nunes. Duas lendas da música.

    Texto irretocável.

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  4. Obrigado VF e Coqueiro pelos comentários e pela visita ao blog.
    VF, quem será você? Fico grato pela lembrança e pelo desejo de sucesso.
    Harley, sempre me encantou a figura de Clara Nunes e, quando tive a grata oportunidade de conhecer Cesária Évora, cujo disco comprei de um catálogo da Globo, fiquei surpreso.

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  5. Parabéns pelo blog, Ernane! É muito bom encontrar pessoas que valorizam e divulgam a boa música em um universo repleto de pessoas frutas e músicas comerciais mas sem essência. Também agradeço pela visita ao meu blog e pelas palavras de incentivo. Você sabe que, assim como você, amo minha profisão . Abraços!!!!

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  6. Edna e Fabiane, muito obrigado pelas visitas. Amigas e colegas de profissão como vocês sempre contribuem positivamente e incentivam-me a prosseguir.

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  7. Grande companheiro Ernane,
    Parabéns pelo post, pelo blog... Muito embora eu esteja atrasado em fazer esta primeira visita, sempre é uma surpresa agradável ler seus textos. Mas tenho de confessar que preciso urgentemente de reforçar meu bom e velho português. Quase precisei de um dicionário... Me comprometo a escutar Cesaria Évora, e então comentar sobre minhas impressões. Giuliano

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  8. Foi bom, muito bom visitar este blog.
    Não vim direito p´ra este post, antes lí com sofrimento a "indignação" e, para animar-me este texto fez-me viajar e sentir o som de CE. Gostei de saber sobre a Clara "Guerreira". Termino minha visita com os versos abaixo:

    "Oh como são lindas tuas entranhas
    Formosura cor de bronze
    Galgo nas curvas densas da tua fauna
    Gritos de tambor No cume das tuas pirâmides
    Sinfonias de paz..." (África mãe do cordão umbilical in Mátria de Nguimba Ngola, Arte Viva-2009)

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