Chego à escola sentindo-me um estranho naquele espaço infantil.
Olho ao redor, paro o carro sob as enormes paineiras da frente da
escola. Faço minha oração e saio do carro. Respiro fundo o ar puro
daquelas paragens e passo pelo portão, observando as diversas
crianças que brincam no pátio, enquanto aguardam o sinal de entrada
da tarde. Elas sorriem, gritam e correm. Algumas estranham aquele
homem esquisito que sorri meio sem graça para elas, ao mesmo tempo em que lhes
diz um boa-tarde meio abafado.
Sou recebido pelas novas companheiras de trabalho e levado ao meu
posto. Tarefas são executadas, mas não deixo de pensar
nas crianças lá fora. As horas se vão e a noite chega. Com ela,
vêm as lembranças daquele dia, especialmente daquelas crianças
brincando no pátio. No outro dia, outras crianças viriam, pois eu
trabalharia no horário da manhã. Fecho os olhos e durmo,
entorpecido pelo cansaço de um dia intenso...
Outro dia em que paro o carro sob as paineiras, agora às 6h da
manhã. A escola está vazia e observo as paineiras gigantes. Um
grande número de aves aprontam uma algazarra nelas e eu fico olhando
aqueles pássaros que voam de uma para outra árvore. Parece que
estão ali brincando...
As primeiras crianças chegam mais cedo no transporte público do
município. Recebo-as e vou cuidar delas até que chegue o horário de
iniciar as aulas. Lembro-me de que fui criança também. Tal
como elas, um menino lampeiro que adorava correr de um lado para
outro, de subir em árvores e de comer fruta no pé. Um menino que
gostava de jogar bola descalço na rua, brincar de pique-esconde e de
tantas outras coisas.
Sinto alguém puxar-me a roupa... “Tio, o senhor gosta de soltar
papagaio?” Não espera minha resposta e já emenda uma história.
“Outro dia eu tava soltando com meu pai, quando é fé meu papagaio
garrou na fiação elétrica...” Interrompi imediatamente. Que
coisa, menino! Na fiação elétrica? E seu pai não lhe chamou a
atenção? Isso é um perigo... De morte! Não se solta papagaio
perto de rede elétrica. E o menino continuava... “Mas tio, não
tinha problema, porque meu pai me levou pra outro lugar. Aí, quando
é fé, chegou um punhado de meninos com uns papagaios grandão, que
custava a voar. O meu era pequeno, de saco de lixo preto. Mas meu pai
pôs umas varetas de bambu bem fina e ele ficou leve. O meu papagaio
também não tinha rabo, era sureco. Quando é fé, os menino foi
soltar os grandão deles e meu pai falou que ia cortar a linha deles
e que ia me ensinar...”
Outras crianças chegaram mais perto para ver o motivo de o tio estar
tão exaltado. E aí aproveitei para tecer um sermão sobre os
cuidados ao soltar pipas, procurando áreas propícias e seguras e,
principalmente, não usar cerol nem a famigerada linha chilena. Mas,
para minha surpresa, várias crianças discordam de mim dizendo que
essa linha é que é a boa, tanto a número 3 quando a número 4,
tanto a rosa quanto a verde. E eu, dando uma de técnico têxtil, fui
explicar o que significava o título dos fios, como se aquilo
interessasse àquelas crianças. Falei sobre os riscos para quem
solta papagaios com tais linhas, bem como para os ciclistas e
motociclistas, bem como sobre as responsabilidades legais de quem faz
isso. Depois de muito falar, lembrei que meu público eram apenas
crianças...
Ou seriam algo mais? Quem sabe eram anjos disfarçados testando meu
conhecimento, minha sensibilidade e minha capacidade de interagir com
seres tão fantásticos? Ou seriam pássaros? Porque, ao observar
aquelas crianças, percebi que elas voavam... Assim como as pipas de
que falavam, essas criaturas inigualáveis voavam bem alto, presas às
linhas, com cerol ou não, chilenas ou simplesmente linhas 10 de
poliéster com que seus pais as seguravam. Na verdade, sonhavam em
subir cada vez mais alto, mas presas à origem e à segurança
daqueles que as amam por essas linhas tênues.
Voei junto com elas!... Nunca fui um caçador de pipas, mas assim
como Hassan, imaginei-me cortando a linha que me prendia a alguns dos
valores falhos que me orientaram até ali como educador, para que eu
abrisse meu olhar para um novo jeito de ensinar e de aprender. Um
sorriso minúsculo no canto de minha boca, apenas de um lado,
lembrou-me Sohrab. Eu era esse menino. Eu era todos aqueles meninos
que voam como pássaros e pipas até mais alto que podem e depois
pousam naquelas paineiras frondosas da escola, puxadas pelas linhas
do amor à educação, que, inexoráveis, não se rompem.