Capa de livreto publicado em Portugal em meados do século XX
Uma tradição oral fez chegar ainda aos primeiros anos da
minha infância, através do hábito amoroso de meu pai contando histórias aos
filhos, a seguinte história. Ouvi-o contá-la com toda a simplicidade da sua
linguagem e agora nos vou recordar, procurando reproduzi-la do
jeito que ouvi e de que me lembro.
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Quando Deus andava pelo mundo, houve um soldado chamado João,
que serviu ao rei oito anos, como ordenava a lei e, como não tivesse outros
meios de vida, tornou a servir o rei mais oito anos e depois mais oito ainda,
até que se fartou da vida militar e pediu a sua baixa. Deixou então o regimento
ao fim de vinte e quatro anos de serviço ao rei, recebendo como pagamento apenas
um pão e seis dinheiros, que lhe deram quando saiu do quartel. Mas, mesmo tendo
deixado o serviço militar, o apelido revelava o que ele tinha sido na maior
parte de sua vida: João Soldado.
Assim, foi embora para sua cidade, pensando: “Está bem! Servi
ao rei vinte e quatro anos para ganhar um pão e seis dinheiros. Quanto tempo
perdido!... Mas há de ser o que Deus quiser, que eu tenho muita esperança que
assim será melhor.”
E foi caminhando tranquilo pela estrada que levava à sua
cidade. Tinha andado um pedaço de caminho, quando encontrou dois mendigos que
lhe pediram esmola. Na verdade, os homens eram Nosso Senhor e São Pedro. João
muito admirado com o pedido, já que tinha tão pouco, respondeu:
— Que lhes posso eu dar, eu que servi ao rei vinte e quatro
anos por um pão e seis dinheiros, que é tudo o que levo comigo?
Um dos mendigos, que era São Pedro, porém, não se contentou com
a resposta, dizendo que qualquer coisa que João tivesse seria mais do que os
dois mendigos tinham.
João Soldado, que tinha um grande coração, abriu então o seu
embornal[1] surrado, tirou o pão e partiu-o em três partes iguais
e deu duas aos pobres viajantes.
Foi andando e, ao fim de uma légua de caminho, encontrou outra
vez os mesmos mendigos, que tornaram a pedir-lhe esmola. João, desconfiado,
disse-lhes:
— Uai, parece que já dei esmola pra vocês lá atrás, mas, na
dúvida, lá vai o resto que tenho, eu que eu servi o rei vinte e quatro anos e só
ganhei um pão e seis dinheiros...
Dizendo isso, resignado, repartiu com São Pedro e Nosso Senhor
o pedaço de pão que levava. Continuou seu caminho e mais adiante tornaram a
aparecer-lhe os dois mendigos, que lhe pediram de novo esmola.
— Vocês outra vez! Se não são os mesmos que eu encontrei há
pouco, São muito parecidos... Mas não importa, porque eu não nego o que tenho
aos que precisam mais que eu, segundo os ensinamentos de Nosso Senhor. Apesar de
ter servido o rei vinte e quatro anos por um pão e seis dinheiros, vou dar-lhes
o que me resta.
Deu então aos mendigos tudo o que lhe restava no embornal. João
Soldado então perguntou aos mendigos se não sabiam onde poderia encontrar
trabalho, para que pudesse conseguir algum dinheiro para se manter até chegar à
sua cidade.
Então, um dos mendigos, que era São Pedro, revelou-se para João
Soldado, dizendo quem eles realmente eram. E Nosso Senhor disse ao João Soldado
que, por sua generosidade, ele podia pedir o que quisesse. João Soldado ficou
muito surpreso e, ao mesmo tempo, lisonjeado por estar na presença de São Pedro
e de Nosso Senhor, dizendo que simplesmente fez o que o seu coração mandou.
Depois de pensar um instante no que iria pedir, mostrou a Nosso
Senhor o embornal surrado que levava, dizendo:
— Embora não mereça nenhuma coisa, pois já sou muito feliz por
ter tido a graça de estar na presença de Nosso Senhor e de São Pedro, peço para
que este embornal tenha o poder de que tudo que eu quiser vá dentro dele assim
que eu ordenar.
Embora achando estranho o pedido do João Soldado, Nosso Senhor
concedeu-lhe o pedido. Ofereceu-lhe também um baralho com o qual ganharia
sempre. Em seguida, abençoou o João Soldado, desaparecendo juntamente com São
Pedro.
João Soldado, após se recuperar da surpresa, voltou à sua
caminhada. Ainda não tinha andado muito, quando, ao entrar na rua de uma cidade,
viu na vitrine de uma padaria um apetitoso e cheiroso pão que parecia ter saído
do forno naquela hora. João Soldado ouviu seu estômago roncar e lambeu os lábios
ao ver aquela delícia, mas não tinha dinheiro para comprar o pão. Então, logo se
lembrou do poder do seu embornal. Assim, disse para o pão:
— Pula para dentro do embornal! — como num passe de mágica, o
pão desapareceu da vitrine e apareceu dentro do embornal do João Soldado.
O padeiro não percebeu nada e assustou-se quando viu que o pão
que estava na vitrine tinha desaparecido. Era quase noite e João Soldado estava
cansado de andar todo o dia. Foi então procurar um lugar para dormir, mas só
encontrou naquela cidade uma casa que estava desabitada há muito tempo e que
ninguém sequer passava perto, porque a casa era mal-assombrada. Dizia-se que era
o fantasma do dono que tinha lá morrido, um homem muito malvado e pão-duro. João
Soldado gostou daquela história de casa mal-assombrada, porque era muito
corajoso.
— Sou um soldado que servi ao rei vinte e quatro anos por um
pão e seis dinheiros e não tenho medo de nada. Vou para essa casa e quero
conhecer esse fantasma.
E foi dormir na casa, ficando muito contente com o que lá
encontrou: uma despensa cheia de excelente comida e bebidas finas, além de
móveis luxuosos na sala e um quarto com uma cama muito confortável.
— Que mais quero eu? — dizia o João — Eu que servi ao rei vinte
e quatro anos por um pão e seis dinheiros, tenho agora aqui, à minha disposição,
comida, bebida e uma cama confortável.
E tratou de encher a barriga. Não tinha passado muito tempo que
o soldado estava comendo, quando ouviu uma voz pavorosa gritar do alto da
chaminé:
— Eu caio!!!...
— Pois pode cair à vontade! Um soldado como eu que serviu ao
rei vinte e quatro anos por um pão e seis dinheiros não tem medo de nada!... —
respondeu João Soldado corajosamente, sem parar de comer nem um instante.
Mal tinha acabado de proferir estas palavras viu cair pela
chaminé uma perna de homem.
— Olá! Quer ser enterrada? — perguntou zombeteiramente para a
perna o João Soldado.
E a perna, levantando o pé indicou com o dedão que não queria
ser enterrada.
— Eu caio!!!... — disse de novo a mesma voz fantasmagórica.
— Pode cair quantas vezes quiser! — repetiu o João Soldado —
Comigo não tem medo, porque eu sou é muito macho.
E logo viu cair outra perna. Em seguida a voz disse novamente
“Eu caio!!!...” e o João Soldado sempre mandando cair, pois ele não tinha medo
de nada. Assim, após cada vez que a voz dizia “Eu caio!!!...”, caiu depois um
tronco, logo depois um braço, em seguida o outro braço e por fim uma cabeça que
completou o corpo. Então, aquele corpo horroroso completo andou para o lado do
João Soldado e lhe disse com a mesma voz pavorosa:
— Você é valente, eu reconheço!...
— Como não poderia ser valente um soldado que serviu ao rei
vinte e quatro anos por um pão e seis dinheiros?!... — respondeu João Soldado,
muito senhor de si.
Então, o fantasma horroroso disse:
— Se você é pobre, poderá ficar muito rico se fizer o que eu
disser.
Mais que depressa, o João Soldado respondeu:
— Prontinho, coisa feia! Estou aqui para o que der e vier.
— Está bem. Venha comigo.
E a alma do outro mundo, seguida do João Soldado, encaminhou-se
para o porão que havia por baixo da cozinha, levantou uma grande pedra que
tapava uma cova e mostrou ao João Soldado três grandes panelas cheias de
dinheiro até a boca.
— Está vendo todo este dinheiro? — disse a alma do outro mundo,
encarando o soldado com os seus olhos horríveis que pareciam duas brasas.
— Vejo sim! — disse o João Soldado.
— Pois parte deste dinheiro será para você se cumprir o que eu
quero.
— Fale logo, coisa feia! — respondeu resolutamente o João
Soldado.
— Divida este dinheiro em três partes. Uma é para dar de
esmolas aos pobres; outra é para mandar rezar missas por minha alma; e a
terceira parte é para você, se cumprir à risca o que eu pedi. Se você fizer
isso, estará salvando minha alma, que o Diabo está doido para levar.
— Dito e feito! — confirmou o soldado — Eu que servi ao rei
vinte e quatro anos, por um pão e seis dinheiros, melhor ainda posso cumprir os
seus pedidos, com um pagamento tão bom.
E o João foi logo tratar de dar as esmolas aos pobres, e de
mandar dizer as missas. Com o dinheiro que restou e que era muito, comprou um
bom sítio e nele passou a viver na fartura.
O que o João Soldado é que o Diabo não estava nada satisfeito
pelo fato de o João Soldado ter feito o que o fantasma tinha pedido. O Diabo
jurou vingar-se do João Soldado, por ele lhe ter tirado a alma do avarento, que
afinal se salvou com as esmolas e as missas. Então, o Capeta mandou um diabinho
dos mais espertos que tinha no Inferno para lhe trazer para ali o João
Soldado.
Certo dia, estava João Soldado sentado sob a sombra de uma
goiabeira no seu sítio, muito distraído ouvindo os passarinhos cantar, tomando
um delicioso suco de manga geladinho, quando lhe apareceu um homenzinho muito
estranho. O homem disse-lhe de forma bem educada:
— Como tem passado, sr. João Soldado? Tudo bem com o sr.?
— Você acabou de chegar e já sabe o meu nome. Eu nunca vi você
antes, como me conhece? — respondeu João Soldado, meio desconfiado daquele
homenzinho feio. — Sou um homem educado, por isso lhe convido a tomar um pouco
de suco de manga.
O diabinho, muito esperto, aceitou a bebida e começou a puxar
conversa com o João Soldado, chamando-o para disputar uma partida de baralho. O
João Soldado não era bobo e logo desconfiou de alguma treta. Entretanto,
concordou com a proposta, pois se lembrou do baralho mágico que tinha ganhado.
Além disso, o João Soldado logo desconfiou que aquele homenzinho era um enviado
do inferno, pois começou a sentir um cheiro de enxofre horrível. Então, foi logo
falando ao diabinho disfarçado:
— Muito bem, vamos jogar! Mas o que vamos apostar, seu diabinho
feioso?
O diabinho ficou surpreso. Viu que o João Soldado era mesmo
muito esperto e tinha descoberto o seu disfarce. Mas foi logo dizendo:
— Se você perder, eu levo sua alma para o inferno.
— E se eu ganhar, vou lhe dar uma surra que você nunca mais vai
me incomodar! — disse o João Soldado — Olhe que eu servi ao rei vinte e quatro
anos por um pão e seis dinheiros e não tenho medo de nada, muito menos de um
diabo como você com essa carinha feia.
O diabinho saracoteou-se muito contente, pois para ele isso era
um elogio. Disse então para o João Soldado que ele era um capeta poderoso,
enviado pelo próprio Lúcifer, e tinha vindo levá-lo para o inferno e nada
poderia evitar isso. Então, João Soldado preparou o embornal e jogou as cartas
do seu baralho mágico. O diabinho estava cada vez mais contente, achando que
seria muito fácil resolver aquele problema do seu chefe, porque poderia
trapacear no jogo com facilidade. Mas o baralho era mesmo abençoado e o diabinho
não ganhou sequer uma partida. Ao final do jogo, ainda tentou escapulir, mas o
João Soldado pegou o embornal e logo disse, dirigindo-se ao diabinho que tentava
fugir:
— Diabinho, pula para dentro deste embornal.
O diabinho rabeou, rogou pragas com palavrões horríveis e
soltou um cheiro mais horrível ainda de enxofre e, antes que entrasse para
dentro do embornal, prometeu grandes riquezas e honrarias ao João Soldado se o
deixasse ir embora. Mas nada adiantou e xingando e esperneando, lá foi para
dentro do embornal do João Soldado. Assim que o João Soldado prendeu o diabinho
dentro do embornal, começou a bater nele com um pedaço de pau bem grosso, que
moeu os ossos do diabinho e o reduziu a um pó tão fino como talco, de modo que o
diabinho pôde sair escapando por um buraquinho do embornal e fugiu para o
inferno apavorado.
O Diabão já o esperava furioso, pois tinha visto tudo do
inferno e esbravejou infernalmente contra o diabinho, por se ter deixado enganar
como um bobo pelo atrevido João Soldado que assim zombava do seu poder.
— Quem vai agora buscar esse João Soldado sou eu mesmo! —
disse, muito furioso Lúcifer para o diabinho, que estava todo encolhido num
canto do inferno, todo dolorido e chorando que dava dó ver.
Naquele momento, o João Soldado estava jantando muito
satisfeito, quando ouviu uma batida na porta tão forte que fez estremecer toda a
casa.
— Deve ser o Diabão! — pensou João Soldado — Já estava aqui
esperando que esse coisa-ruim viesse, depois da peça que preguei ao seu
camarada.
E assim era. O Diabão entrou de uma vez e nem esperou o João
Soldado abrir a porta, derrubando-a com um chute. Os olhos faiscavam raiva e
quando falou, parecia que se abria a boca de um vulcão, vomitando lavas de fogo
e enxofre.
— Você vai pagar por tudo que fez ao meu diabinho! — rugiu o
Diabo infernalmente.
— Se você vem para cá com essa falta de educação, achando que
pode tudo, vai pelo mesmo caminho do seu diabinho! — disse-lhe João Soldado,
pondo o embornal já no jeito.
— Isso é que havemos de ver, miserável humano. Desta vez vou
levar você para as profundezas, como o maior patife deste mundo. E vou lhe
deixar queimando no fogo do inferno.
— Olhe que eu não tenho medo, seu Diabão feioso. Servi ao rei
vinte e quatro anos por um pão e seis dinheiros e nada me apavora, pois tenho
ajuda de quem pode mais, que é Nosso Senhor.
O Diabão ficou ainda mais furioso e rancoroso quando o João
Soldado falou de Nosso Senhor e já ia fincar suas unhas no João Soldado, quando
ele, dando um pulo para trás, abriu o embornal em frente do Diabão e gritou:
— Já para dentro do embornal, coisa-ruim!
Ouviu se um grande rugido medonho que o Diabo soltou dentro do
embornal e, preso dentro do embornal, debatendo-se furiosamente, dava pulos até
ao telhado, enquanto o João Soldado, armado de um pedaço de ferro bem pesado,
dava cacetadas sem dó no Diabão até moê-lo inteirinho. E o Diabão gritava dentro
do embornal, pedindo humildemente por todos os Diabos que o João Soldado o
deixasse ir de volta para o inferno. Então o João Soldado disse:
— Ah, já está pedindo misericórdia! Pois então vá para o
inferno! — E o João Soldado abriu a boca do embornal, donde saiu o Diabão todo
moído e quebrado, com o rabo pendurado e os chifres entortados, mal se podendo
arrastar.
Quando o Diabão chegou ao Inferno, estava em tal estado que os
diabinhos ficaram morrendo de medo do que ia acontecer. Lúcifer então ordenou
que forjassem enormes portões de aço e fabricassem fechaduras bem fortes para
trancar as portas do inferno, com medo que o João Soldado lá entrasse atrás
dele.
Passado algum tempo, João Soldado se casou com bondosa e linda
mulher. Eles tiveram muitos filhos e isso lhe trouxe um grande problema: naquela
região onde moravam era difícil conseguir um compadre. Todos os vizinhos já eram
seus compadres e alguns já tinham até repetido. Quando nasceu seu último filho,
ele avisou à mulher que ia ser muito difícil conseguir um padrinho para a
criança.
Um dia, indo pela estrada, ele viu uma figura estranha, a quem
o João Soldado chamou e lhe perguntou se queria batizar seu filho. Na verdade,
era a Morte, que ficou muito lisonjeada e lhe disse que, embora não gostasse de
Igreja, iria até lá para batizar seu filho. Apesar dos protestos da mulher, João
Soldado levou o filho para a “comadre” Morte batizar.
Um dia depois, andando pela estrada, a Morte foi ao seu
encontro e lhe propôs um trato. Ele se tornaria um curandeiro. Quando chegasse a
uma casa e encontrasse a Morte sentada na cabeceira da cama, podia desenganar o
doente que esse era dela. Mas, caso a Morte estivesse sentada nos pés da cama,
ele podia receitar chás de ervas ou o que quisesse que o doente se curaria.
Trato feito, João Soldado começou a curar.
Até que, um belo dia, João Soldado foi chamado à casa de um
fazendeiro ricaço. Havia muitos médicos famosos lá, tentando curar o homem.
Apesar de os médicos não acreditarem nele, de acharem que aquilo era bobagem, os
filhos do fazendeiro haviam resolvido recorrer ao João Soldado. Ao entrar no
quarto do doente, João Soldado viu a comadre assentada na cabeceira da cama com
uma cara sisuda e logo pensou em como resolver aquela situação. Assim, pediu às
pessoas da família que mandassem fazer um “sistema de uma gangorra”. João
Soldado instalou aquilo no meio do quarto, pôs o doente em cima e rodou várias
vezes. A comadre Morte correu atrás, mas perdeu o doente. João Soldado o curou e
ainda ganhou um bom dinheiro da família do fazendeiro.
Um outro dia, andando pela estrada, João Soldado encontrou-se
com a Morte, que estava furiosa e pretendia levá-lo. João desculpou-se, dizendo
que tinha feito aquilo porque os médicos estavam duvidando dele. Mas, para a
Morte, não havia justificativa que valesse. Sendo assim, João lhe disse que não
queria morrer em pé e, tirando o embornal, gritou:
— Pula para dentro do embornal, Comadre!
Assim, João Soldado prendeu a Morte. Dependurou o embornal num
cômodo do seu sítio, num gancho bem alto e deixou a Morte lá. A partir daí,
ninguém morria mais. Inclusive João Soldado e sua mulher, que foram ficando bem
velhinhos!
Um belo dia, passando por uma aldeia, uma mulher muito velha
acusou-o de ser o culpado por aquela situação. Ela já estava cansada de viver e
queria ir para o céu. João Soldado achou que já estava na hora de soltar a
Morte, mesmo que ela o levasse. Só que a comadre Morte tinha medo dele e não
queria levar o João Soldado com ela... Nem chegava perto dele, com medo de ele
prendê-la no embornal novamente.
João Soldado foi ficando muito velho e já queria ir embora.
Resolveu então procurar sozinho a porta do céu ou a do inferno. A comadre Morte
deu-lhe umas dicas, de longe. A primeira porta que João Soldado encontrou foi a
porta do inferno. Mas o capeta não quis deixar João entrar, pois chefão Lúcifer
tinha avisado para tomar muito cuidado com o João Soldado, que ele era muito
perigoso.
Logo então, João Soldado pôs-se a caminho do Céu. Chegando às
portas do Paraíso, bateu e São Pedro perguntou de dentro:
— Quem é?
— Sou eu, o João Soldado, que serviu ao rei vinte e quatro anos
por um pão e seis dinheiros.
São Pedro parecia ter se esquecido do João Soldado que o
ajudara e a Nosso Senhor, quando, disfarçados de mendigos, pediram-lhe ajuda. O
porteiro do céu disse então ao João Soldado:
— Só por ter servido ao rei vinte e quatro anos, você não pode
entrar aqui no Paraíso. O mais importante é quanto serviu a Nosso Senhor! —
Respondeu São Pedro, entreabrindo a porta da guarita onde ficava para poder
olhar direito o João Soldado.
Este, por sua vez, ficou um pouco bravo e falou:
— Por que isso agora, seu São Pedro? Por que um soldado que
serviu ao rei vinte e quatro anos por um pão e seis dinheiros e serviu a Nosso
Senhor a vida toda não pode entrar no Paraíso?
São Pedro reconheceu os argumentos, mas achou o João Soldado
muito atrevido e resolveu teimar um pouco e não deixá-lo entrar tão
facilmente.
Só que o João Soldado era mais teimoso ainda e realmente muito
atrevido e, sem respeitar ao as barbas brancas de São Pedro e sua venerável
careca, disse a São Pedro que, se ele não o deixasse entrar, iria colocá-lo
dentro do embornal. São Pedro então se lembrou do soldado que o tinha ajudado
quando estava com Nosso Senhor disfarçados de mendigos e disse-lhe:
— Olhe, que foi por meu pedido que Nosso Senhor lhe deu esse
embornal, e você não deve jamais usá-lo contra mim!
— Eu não penso assim! Depende da situação e agora é uma
oportunidade ótima. Ou me deixa entrar, ou vai para dentro do embornal! —
ameaçou o João Soldado.
E como São Pedro já ia fechar a porta da guarita, sem lhe dar
tempo, João Soldado gritou:
— Para dentro do embornal.
São Pedro na mesma hora ficou preso dentro do embornal e o João
Soldado entrou no Paraíso. Em seguida, São Pedro gritou:
— Tire-me daqui, que eu lhe deixo ficar aí no céu. Tire-me
daqui, antes que alguma alma ruim entre no Paraíso e Nosso Senhor venha me
chamar a atenção.
E assim, o João Soldado entrou no céu, ele que serviu ao rei
vinte quatro anos por um pão e seis dinheiros. E que serviu a Nosso Senhor por
toda a vida.
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O soldado
por anos de tradição constrói-se um caráteruma história que ficou na memóriapedaços de um tempo de carinhoà beira de um fogão a lenhapor anos de tradição constrói-se um caráteruma lembrança que ficou na históriarecortes de um tempo de meninocom medo de que algum monstro venhaà noite cair pedaço por pedaço à sua frentee ele não tem a coragem do João Soldadoe ele não tem um embornal abençoadona verdade assim se faz a vida da gentecom pedaços de carinhos que acumulamoscom histórias de vidas que aos pouquinhoseconomizamos dentro do nosso coraçãotodas aquelas pessoas que nós amamostodos aqueles amedrontados menininhosque se lembram daquele soldado Joãoque com sua esperteza enganou até a mortee enfrentou os demônios com coragem e sortemas nunca deixou de ter uma boa intençãoe de louvar a Nosso Senhor com devoçãofoi ajudando aos outros que se deu beme acabou indo parar no Paraísoe para isso passou por poucas e boas na vida...por anos de tradição constrói-se um caráteruma história que ficou na lembrançapedaços da vida de uma criançaque cresceu mas continua menino(Enanre Etraud Senun)
[1]substantivo masculino — (I) sacola de pano, couro, ou
outro material, com alça longa, us. ger. a tiracolo para se carregar provisões,
ferramentas etc. — (II) espécie de saco em que comem as cavalgaduras (retirado
do Dicionário Houaiss).
Capa de cordel feito no Nordeste do
Brasil