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domingo, 6 de maio de 2012

Crônica de vida e trabalho


Era um garoto tímido. Extremamente magro, o menino sempre teve dificuldade em socializar-se. Ele acordou cedo naquele dia. Afinal, seria seu primeiro dia de trabalho. Já tinha o costume de acordar cedo, mas naquela segunda-feira não conseguiu passar das 5h da manhã. Foi ao quintal, buscou um pouco de lenha e acendeu a fornalha. Voltou para tratar das galinhas, dos porcos e do seu cachorro fila. Foi até o córrego que passava no fundo de casa conferir as varas e as linhas de espera e um bagre de bom tamanho juntamente com um douradinho estavam presos e iriam servir para o almoço. Trouxe-os e os jogou no poço onde mantinha os peixes vivos, debaixo do pé de manga-espada. Enquanto isso, sua mãe preparava o café e seu pai ouvia o programa do Zé Bettio no rádio.

O coração do menino batia ansioso pela expectativa. O apito da fábrica às seis horas da manhã acelerou as batidas e iniciou uma contagem regressiva. Às 06h40min o pai chamou: “Vamos pegar no batente?” O coração já não se continha. Um abraço e um beijo na mãe e o pedido de bênção, deixando a casa. Seguiram pelos fundos da casa, para um potãozinho por onde o pai passava todos os dias. O pai era o único funcionário da empresa que não passava pela portaria, tamanha era a confiança do gerente da fábrica. Estava fazendo muito frio naquele dia de junho. Mas o menino sentia calor, aquecido pela ansiedade.

Marcou o cartão, como o pai lhe ensinou e aguardou a chegada do monitor de treinamento que o levaria à seção e lhe mostraria o que fazer. Foi direto para o setor de trabalho e começou sua aprendizagem. As primeiras quatro horas passaram rapidamente e logo chegou a hora do almoço. Fez o caminho de volta para casa em silêncio com o pai, que não lhe perguntou como foram as primeiras horas. Mas a mãe sim. Entretanto, como o tempo para o almoço era exíguo, não teve muito o que falar. Voltou para as quatro horas restantes, que também passaram rapidamente e logo retornou para casa. O pai continuava em silêncio e nada perguntara.

Mais uma vez, não havia muito tempo para conversar. Tinha que tomar banho logo e seguir para a escola a pé, numa caminhada de cerca de quarenta minutos. Antes ia de bicicleta, mas agora não mais podia guardá-la dentro da escola. A possibilidade de a roubarem era grande e não valia a pena arriscar. Então, ele e mais dois colegas vizinhos iam a pé todos os dias. Às vezes ganhavam carona na ida e na volta, embora nem sempre.

Quando chegou da escola às 23h, o pai o esperava com a mãe. A janta estava no canto do fogão a lenha e, enquanto comia, o pai lhe perguntou finalmente como fora o dia. Uma alegria silenciosa invadiu o peito do menino. Contou ao pai sobre seu entusiasmo e o que aprendera. Contou como se impressionou com aquelas máquinas que transformavam algodão em fio. Mostrou ao pai e à mãe as queimaduras nas mãos, com todo o orgulho de um trabalhador pelos calos que cultiva ao longo de sua jornada. O pai sorria, com um olhar satisfeito para o filho. Findo o jantar, bênção de pai e mãe. O menino já não se sentia mais assim. Orgulhoso, dormiria naquela noite o sono de um homem.


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“O sono de um homem”

o sono de um homem é repleto de expectativas
de um dia seguinte melhor que o que passou
ninguém jamais saberá tudo o que povoa sua cabeça
nem mesmo ele próprio o sabe em sua plenitude

pensamentos são velozes e sinuosos
silentes, não alardeiam sua presença
aguardam o momento de serem percebidos
na tênue hora do sono cansado

o sonho é então um pensamento que amadurece
e penetra profundamente no coração do homem
ao invadir seu íntimo
transforma-se em parte de sua alma
e passa a ser a imagem mais perfeita
da esperança...
(Enanre Etraud)


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Para finalizar, deixo cá os versos do grande Fernando Pessoa, no seu heterônimo Álvaro de Campos, sobre o sono:

O Sono

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), in “Poemas”

Pai e filho enxada